À Sombra da Escravidão. Roberto
Pompeu de Toledo
O Brasil é um país fundado sobre o trabalho forçado e o comércio de
gente. Como foi isso? E o que tem a ver conosco, hoje?
Eles estavam por toda parte. Na lavoura, nas cidades. Dentro de casa, nas
senzalas, fugidos no mato. Prestando serviços nas grandes cidades, como Rio de
Janeiro e Salvador: vendendo água, comida, panelas, miçangas, badulaques.
Exercendo ofícios especializados, como conta um observador da vida brasileira
do século passado, o francês Jean-Baptiste Debret:
"... o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre um negro ou pelo menos
escravo. Esse contraste, chocante para o europeu, não impede ao habitante do
Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma
pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado
com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas."
Eles eram carregadores, também. "Carregavam tudo nesse Brasil, onde homens
de qualidade se recusavam a levar o mais ínfimo pacote", escreve a
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no livro Negros, Estrangeiros. Carregavam
as cadeirinhas onde os brancos iam sentados, baús, caixas, caixões, caixotes,
sacas de café, os barris com os dejetos produzidos nas casas, que logo cedo, às
6 da manhã, no Rio de Janeiro, procissões de negros iam jogar ao mar. Este foi
um país de escravos. O maior país de escravos dos tempos modernos, talvez. Ou,
pelo menos, o país moderno mais dependente de escravos. Ou, pelo menos, o maior
e mais dependente de escravos do continente americano. Havia diversos tipos de
escravo. De propriedade do senhor ou alugados. Empregados no eito ou no serviço
doméstico. E havia os escravos "ao ganho" - aqueles que o senhor
punha a realizar determinado serviço para fazer algum dinheiro. Os que trabalhavam nas cidades, exercendo
diversos ofícios, podiam ser libertos, mas podiam ser também escravos "ao
ganho". Ou escravas, que tanto podiam vender quitutes como prostituir-se,
para proveito de seu senhor ou senhora.
Este foi um grande país de escravos, e quem se lembra disso? Nesta
segunda-feira, 13 de maio, comemora-se a abolição da escravidão. Faz 108 anos
que a princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea. Nessa data, fazendo uma
exceção, no geral processo de esquecimento nacional, talvez se lembre um pouco
a escravidão, nas escolas e nos jornais, se bem que cada vez menos: o 13 de
maio foi colocado em desgraça pelo Movimento Negro, considerado uma data
"branca", comemorativa de um gesto de suposta
"benevolência". Prefere-se hoje comemorar o dia da morte de Zumbi,
o herói do Quilombo dos Palmares, 20 de novembro.
Trocou-se um mito pelo outro, o da senhora bondosa, que gentilmente concede a
liberdade aos súditos negros, pelo do negro rebelde e audaz, herói do
inconformismo. Entre ambos fica a realidade dura, cotidiana, suarenta, diversa,
complexa - e, fora do círculo dos especialistas, ignorada. O Brasil teve três
séculos e meio de regime escravocrata, contra apenas um de trabalho livre. Três
e meio para um! Ao longo desses três séculos e meio, importou 4 milhões de
negros africanos, 40% das importações totais das Américas, numa das mais
volumosas operações de transferência forçada de pessoas havidas na História.
Este é um país formado na concepção de que trabalho é algo que se obriga outro
a fazer e pessoas humanas são mercadorias.
O Hino à República, aquele que pede à liberdade para que "abra as asas
sobre nós", diz a certa altura:
Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...
São versos espantosos. "Outrora" houve escravos. O hino é de 1890.
fazia dois anos, portanto, ainda havia escravos, talvez dentro da casa, ou pelo
menos na porta do autor da letra, o poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque.
Como "outrora"? Dois anos é outrora? E a letra diz que nós "nem
cremos" que tenha havido escravo. Como não cremos? Era só olhar em volta,
ou um pouquinho para trás. Já tinha começado o processo de esquecimento que
dura até hoje.
Havia escravos boçais e escravos ladinos. Boçais eram os que, mal chegados da
África, não conheciam a língua nem o costume da terra. Ladinos eram os já
afeiçoados à língua e truques locais. Um escravo podia ser objeto de compra,
venda, empréstimo, doação, penhor, seqüestro, transmissão por herança, embargo,
depósito, arremate e adjudicação, como qualquer mercadoria. Mas era uma
mercadoria especial. Quando cometia um crime, era punido com os rigores do
Código Penal. Por isso, o historiador Jacob Gorender escreveu: "0 primeiro
ato humano do escravo é o crime". Então ele virava gente, de pleno
direito.
O historiador Luiz Felipe Alencastro, que última um aguardado livro sobre o
assunto, O Trato dos Viventes, afirma: "A escravidão não dizia respeito
apenas ao escravo e ao senhor. Ela gangrenava a sociedade toda, e criou um
padrão de relações sociais e de trato político que deixou conseqüências
graves". Para insistir em algo que nunca é demais repetir, o Brasil é um
país criado na concepção de que trabalho é escravidão. Portanto, liberdade é
não-trabalho. A historiadora Hebe Maria Mattos de Castro, da Universidade
Federal Fluminense, observou que a atividade exercida pelas pessoas era
qualificada diferentemente, nos documentos, segundo a pessoa fosse escrava ou
livre. Escreve ela, no livro Das Cores do Silêncio: "Enquanto os escravos
estavam associados a algum tipo de serviço (serviço de roça, serviço de
carpinteiro), os homens livres viviam de alguma coisa. Em geral, de seus bens e
lavouras, mas também de seu jornal, de seu ofício de carpinteiro ou
simplesmente de agências".
Gente pobre também tinha escravo, uma mercadoria barata, exceto nas poucas
fases de escassez de oferta. Mesmo ex-escravos tinham escravos, e até houve
casos de escravos que tinham escravos. Tinha-se escravo porque era uma
mercadoria barata, mas também por outra razão, no caso dos ex-escravos, de pele
escura: para mostrar à sociedade que não eram escravos. Ou, como escreve Hebe
Maria Mattos de Castro, a condição de proprietário de escravos, nem que fosse
um escravo só - e geralmente era um só mesmo -, servia para "negar de
maneira global a situação anterior".
Em 1798, o Brasil tinha 3,2 milhões de habitantes e 1,6 milhão de escravos, a
metade da população. Em 1816-1817, vésperas da Independência, a população total
era de 3,6 milhões de habitantes e os escravos 1,9 milhão. Entre os escravos
havia os africanos, nascidos na África, e os crioulos, nascidos no Brasil. Os
africanos quase sempre foram maioria, dada a intensidade do tráfico, que os
despejava aos milhares, a cada ano, nos portos de Salvador ou do Rio. Em
Salvador, em 1835, os africanos eram 63% dos escravos e 33% da população de
65.500 habitantes. Foi quando ocorreu a famosa Revolta dos Malês, uma das
maiores insurreições de escravos do Brasil, liderada por negros muçulmanos,
conhecidos como "malês". Os traficantes baianos abasteciam-se na
África Ocidental, aquela parte saliente do continente africano, mais ao norte,
onde fica o Golfo de Benin, de secular ligação com a Bahia, e os cariocas na
África do centro-sul, a região do Congo e Angola. Secundariamente, os cariocas
poderiam ir buscar escravos também em Moçambique, na costa oriental africana.
Entre 1790 e 1830, só pelo Porto do Rio de Janeiro entraram 700.000 escravos.
Eles abasteciam não só a cidade e a província do Rio, mas também as regiões
Sudeste e Sul. A massa de recém-chegados estava em constante renovação, o que
equivale a dizer: o Brasil não era apenas um país de escravos, era um país de
estrangeiros. A escravaria, escrevem os historiadores Manolo Florentino e José
Roberto Góes, num trabalho inédito, A Paz das Senzalas, era "um conjunto
marcado por altos graus de desarraigo social, mediante a incessante introdução
de forasteiros". Os mesmos autores acrescentam: "0 cativeiro
assentava-se na contínua produção social do estrangeiro".
A massa dos escravos, que o senso comum costuma imaginar homogênea e até, nas
visões mais românticas, solidária, era diversa e abrigava conflitos em seu
seio. Em muitos episódios, emergiu o conflito entre crioulos e africanos. Em
1789 houve um levante de escravos na Fazenda Santana, em Ilhéus, Bahia, notável
porque os negros amotinados deixaram um documento contendo suas reivindicações
ao proprietário, Manuel da Silva Ferreira. "Meu senhor, nós queremos paz,
e não queremos guerra", começa o documento. Em seguida os revoltosos, que
durante dois anos conseguiram manter-se escondidos no mato, pedem desde a
permissão para trabalhar em suas próprias roças, nas sextas-feiras e nos
sábados, até a liberdade de "brincar, folgar e cantar em todos os tempos
que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença." Mas eles
também não querem "fazer camboas e mariscar", e dizem ao senhor:
"Quando quiser fazer camboas e mariscar, mandes os seus pretos Minas".
Tratava-se de uma rebelião de crioulos, e eles estavam pouco se importando com
a sorte dos "pretos Minas", nome genérico dos africanos caçados na
Costa da Mina, na África Ocidental.
Inversamente, a Revolta dos Malês foi um movimento de africanos. Quase todas as
revoltas de escravos em Salvador e no Recôncavo Baiano, e elas foram muitas,
eram de africanos, e os crioulos ou ficavam neutros ou contra. Escrevem os
historiadores João José Reis e Eduardo Silva, falando da Bahia, no livro
Negociação e Conflito: "Tudo indica que a presença de muitos africanos
inibia politicamente os crioulos, e os persuadia a comprometer-se com as
classes livres ou senhoriais".
Os próprios africanos eram diferentes entre si - vinham de regiões diferentes,
de diferentes etnias, línguas e costumes. Negros de origens diversas conviviam
no mesmo plantel, e interessava ao fazendeiro que fosse assim. Robert Walsh, um
inglês que viajou pelo Brasil no início do século passado, escreveu que a
população negra era composta de "oito ou nove castas diferentes", que
entre si se empenhavam "em lutas e batalhas", e acrescentou: "Os
brancos incentivam essa animosidade, procurando mantê-la viva, por acharem que
ela está intimamente associada à sua própria segurança".
Nos últimos anos aumentou o conhecimento do que foi a escravidão no Brasil. A
busca paciente nos arquivos, o levantamento de números e o emprego de métodos
estatísticos estão na raiz desse avanço, bem como o surgimento de uma geração
de historiadores votada ao trabalho miúdo, constante e aplicado. O uso dos
recursos da antropologia e da economia e as pesquisas no exterior,
especialmente sobre a África, também contribuíram. Pena que o resultado desse
trabalho fique restrito ao mundo acadêmico, mesmo porque dá origem a estudos
acadêmicos, em linguagem acadêmica, de difícil acesso ao leitor comum.
Vão-se apresentar a seguir duas amostras do que a historiografia atual tem
produzido. A primeira versa sobre a crucial questão do tráfico de escravos. A
outra conta a história de uma fuga de escravos ocorrida no município de
Vassouras, Estado do Rio. O tráfico é o tema do livro Em Costas Negras, de
Manolo Garcia Florentino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
do qual se apresentará um resumo. A fuga de Vassouras será contada a partir de
um dos capítulos do livro Histórias de Quilombolas, de Flávio dos Santos Gomes,
professor da Universidade Federal do Pará. Os livros têm em comum o fato de
resultarem de trabalhos premiados pelo Arquivo Nacional, sob cujos auspícios
foram publicados, em edições modestas e de pequena tiragem, no fim do ano
passado.
SUA EXCELÊNCIA, O TRAFICANTE
Quem era ele, como era o seu negócio,
o itinerário que comandava, entre dois
continentes, e sua posição na sociedade.
No dia 14 de novembro de 1827, o navio Arsênia zarpava do Porto do Rio de
Janeiro. Destino: os portos de Molembo e Cabinda, na costa congo-angolana. O
Arsênia levava a bordo oito sacos de feijão, treze de arroz, 110 de farinha,
130 arrobas de carne-seca, oito pipas de aguardente e 160 alqueires de sal. E
ainda onze fardos e oito caixas de fazendas, catorze caixas de armas de fogo,
uma caixa com navalhas, espelhos, corais e facas, e 300 barras de ferro. A
viagem era para comprar escravos. Empresariava-a o traficante Antônio José Meireles.
O primeiro grupo de mercadorias era para a manutenção da tripulação e da
escravaria. O segundo, para fazer o escambo, na África. Esse era um comércio em
que não entrava dinheiro. Entrava mercadoria - no caso do Arsênia,
principalmente fazendas e armas.
A missão foi coroada de êxito. No dia 23 de abril de 1828, pouco mais de cinco
meses depois, o navio estava de volta. Dos 292 escravos que comprara na África,
289 desembarcaram no Rio, o que representava perda de apenas três na travessia,
irrisória. O caso do Arsênia, citado por Manolo Garcia Florentino em seu livro,
mostra o que se levava para alimentar os escravos, no começo do século passado,
e o tipo de mercadoria que servia para o escambo. Outras vezes, muitas, o
escambo era pesadamente baseado na aguardente, a boa e velha cachaça
brasileira, também chamada de giribita. O navio Boa Viagem, que zarpou para
Angola no dia 16 de outubro daquele mesmo ano de 1827, levava oito barris de
aguardente para o escambo, além de 58 rolos de fumo.
Mas o item que mais pesava nas despesas do traficante, entre as compras para o
escambo, segundo Florentino eram os tecidos. Tratava-se de produtos importados,
em geral de Goa, na índia. Havia também produtos europeus, como as armas de
fogo, muito valorizadas pelos vendedores africanos de escravos. Isso revela que
o traficante era ao mesmo tempo um importador e um reexportador desses
produtos, o que faz Florentino escrever: "Estamos frente a um agente
constantemente ligado ao comércio internacional e a outras áreas do império
português (como a índia), para onde transferia parcela expressiva dos
rendimentos auferidos com a compra e a venda de africanos".
Eis uma primeira noção a reter: o negócio do tráfico não era para qualquer um.
Exigia grandes investimentos, que começavam na compra ou aluguel do navio,
passavam pela aquisição dos artigos para o escambo, e terminavam nas despesas
de seguro, fundamentais num empreendimento de risco como esse, sujeito a
naufrágios e à ação dos piratas, para não falar na natureza perecível - e como!
- da mercadoria de sua especialidade. Era negócio para homens experientes no
comércio, de múltiplas relações e grossos cabedais.
O livro de Florentino detém-se num período e num lugar determinado - o período
é 1790-1830, e o lugar é a praça do Rio de Janeiro. O autor vale-se de fontes
documentais como escrituras públicas, inventários post-mortem e,
principalmente, listagens de entrada de navios negreiros no Porto do Rio,
elaboradas pelos funcionários da capitania dos portos, com razoável precisão,
nas quais constava o nome do capitão e do traficante, o número de escravos
embarcados na África e o efetivamente desembarcados no Brasil.
Que era a praça do Rio de Janeiro, no período estudado? Não era apenas a mais
importante do Brasil. O fluxo de escravos que ela comandava no Atlântico Sul,
era o mais importante do mundo. O ouro das Minas Gerais transformara o Rio no
principal porto da colônia. Agora, nesse período que fecha a era colonial e
inicia a fase independente do Brasil, o Rio comanda o pólo mais dinâmico da
economia brasileira. Na primeira década do século XIX, seu porto detém 38,1%
das importações e 34,2% das exportações brasileiras, contra respectivamente
27,1% e 26,4% do segundo colocado, a Bahia. Além de capital do país, a cidade é
o centro de convergência de sua província nº 1, a do Rio de Janeiro, fortemente
voltada para a agroexportação, tanto ao norte, em Campos, região de engenhos de
cana-de-açúcar, quanto ao sul, no Vale do Paraíba, onde o café começa sua
vertiginosa ascensão.
O Rio estava sedento de braços, tanto a província como a cidade. A cidade, onde
a partir de 1808 se instala a Corte portuguesa, conheceu crescimento
populacional de 160% entre 1799 e 1821. Isso requeria mais serviços e mais
trabalho, vale dizer, mais escravos. A província como um todo pulou de 169.000
habitantes, em 1789, para 591.000, em 1830. Em 1830, os escravos eram 40% da
população da província. Em 1837, eram 57% da população da Corte, ou seja, a
cidade do Rio de Janeiro. Leve-se em consideração, ainda, que o porto carioca
também abastecia de escravos a província de Minas Gerais e, subsidiariamente,
São Paulo e as províncias do sul, e o quadro de uma forte demanda pelo braço
escravo se completa.
Entre 1796 e 1830, 1.576 navios negreiros entraram no Porto do Rio. O tráfico
apresenta nesse período crescimento de 5,1% ao ano. Um fato capital ocorre na
segunda metade da década de 1820. A Inglaterra, que abolira seu próprio tráfico
para as colônias em 1807, e desde então passara a pressionar os demais países a
fazer o mesmo, inclui no pacote de exigências para o reconhecimento da
Independência do Brasil o fim do comércio de escravos. O Brasil acaba cedendo,
e em 1827 assina um acordo comprometendo-se a fazê-lo a partir de 1830. Esse
compromisso não seria cumprido, e o tráfico brasileiro se prolongaria por mais
vinte anos. Mas a perspectiva era de que estava por terminar, e então os
traficantes brasileiros se dão a uma desesperada cartada de fim de festa.
Demonstrando "grande capacidade de mobilização de recursos", escreve
Florentino, a elite escravocrata passa a recepcionar a média de 95 navios
negreiros por ano, entre 1826 e 1830 - quase dois por semana. Era o dobro da
média até então.
Quantos escravos viajavam em cada navio? Isso dependia do tipo de navio, fosse
bergantim, chalupa ou galera. Analisando as décadas de 1810 e 1820, Florentino
chega a uma média de 442 escravos embarcados na África por navio. Florentino,
um missionário dos números, que quando não os encontra, precisos, cerca-os por
meio de laboriosas aproximações, fecha suas contas relativas ao total do
período estudado concluindo que desembarcaram no Porto do Rio, entre 1790 e
1830, 706.870 escravos.
Para que tantos braços importados? Porque o crescimento da economia o requeria,
por um lado. Por outro, porque a escravaria já estabelecida no Brasil não se
reproduzia de maneira a suprir as necessidades de reposição ou de aumento da
mão-de-obra. Pelo contrário, tomada em si mesma, isto é, sem a injeção do
tráfico, a população escrava tendia a diminuir. Por quê? Em primeiro lugar,
porque havia em seu interior um acentuado desequilíbrio entre os sexos.
Importavam-se sobretudo homens. Homens era do que precisava a lavoura. No campo
fluminense, havia de seis a sete homens em cada dez escravos. No meio urbano,
em 1815-1817, havia 3,1 homens para cada mulher. Segundo outro autor, Jacob
Gorender, citado por Florentino, o fazendeiro não se preocuparia em propiciar
condições para a reprodução natural da escravaria porque isso custaria mais
caro do que se abastecer no tráfico.
O escravo era mercadoria barata, eis outra noção a reter. Houve períodos em que
encareceu, devido à pouca oferta, mas em geral era barata, tanto assim que
mesmo os pobres os tinham. Era barata porque em geral havia abundante oferta
por parte dos traficantes. E por que a oferta era tão abundante'? Uma razão
importante é quase um segredo, tanto tem sido escondida: porque os próprios
africanos colaboravam na captura dos escravos, o que contribuía sobremaneira
para abater os custos da operação.
Imaginar expedições de brancos a embrenhar-se nos matos africanos e armar
emboscadas para capturar escravos é algo tão comum quanto, geralmente, falso.
Houve expedições dessas, principalmente no começo da escravização dos africanos
pelos europeus, nos séculos XVI e XVII. Mas com o tempo consolidou-se o padrão
pelo qual os africanos se seqüestravam eles próprios, e vendiam os seqüestrados
como escravos aos comerciantes brancos. A escravização já era conhecida, na
África, inclusive para uso interno. No Reino do Congo, por exemplo, usavam-se
escravos. Faziam-se os escravos, em geral, entre os povos inimigos, ao cabo de
uma guerra vitoriosa. Nesse caso, o escravo era um ganho suplementar, um
subproduto do ganho territorial ou de outra espécie advindo da guerra. Mas
houve também o caso de guerras que eram feitas com a finalidade precípua de
fazer escravos. Tratava-se de mercadoria que os europeus tinham tornado
preciosa, pois podia ser trocada por cobiçados bens estrangeiros.
O comerciante branco não precisava embrenhar-se na mata. Ficava esperando no
litoral que lhe trouxessem a encomenda. Escreve Florentino: " ... os
grupos dominantes africanos viam no tráfico um instrumento através do qual
podiam fortalecer seu poder, incorporando povos tributários e escravos. A venda
destes últimos no litoral lhes permitia o acesso a diversos tipos de
mercadorias e material bélico. Desse modo, aumentava sua capacidade de produzir
mais escravos e, por conseguinte, de controlar os bens envolvidos no
escambo". O escambo dava aos chefes africanos acesso a mercadorias como
cavalos, pólvora e armas de fogo. A conclusão de Florentino, neste ponto, é que
o tráfico teve um papel estrutural não só na economia brasileira, mas também na
africana. Isso explicaria por que durou tantos séculos, acumulando um poder que
lhe permitiu até driblar as pressões exercidas pela Inglaterra, a grande
potência do período, detentora de uma Marinha onipresente no planeta.
Observe-se o itinerário de um escravo capturado. O seqüestro se dava no interior
da África, às vezes tão longe quanto na região dos lagos, lá onde o hoje Zaire
(ex-Congo) confina com os atuais Tanzânia, Uganda e Quênia. Ali ele era
comprado de um soba africano por um "sertanejo", um agente do
comerciante litorâneo, e levado para o litoral - em geral a Luanda, o principal
porto de embarque de escravos ao sul do Equador. Florentino descreve o
comerciante de escravos de Luanda: não seriam mais de uma dúzia, descendentes
de portugueses, cercados de luxo, vivendo em amplos sobrados, servidos por
multidões de escravos. Em Luanda na época não havia mais que 400 brancos, para
uma população total de 4.000 habitantes. Esse comerciante de escravos de Luanda
podia ser um mero agente, ou comissário, do traficante carioca, ou um
negociante de "efeitos próprios". Mesmo nesse último caso, porém,
mantinha uma relação de subordinação para com o comerciante do Rio.
Em Luanda (ou Cabinda, ou Benguela) o comerciante local entregava o lote de
escravos pretendido ao capitão do navio a serviço do traficante carioca.
Seguia-se a travessia marítima. Uma vez no Rio, e uma vez pagos os direitos
alfandegários, o escravo era exposto em armazéns da Rua do Valongo, onde
funcionava o mercado dos "escravos novos". Os compradores urbanos se
abasteciam ali. Ou então em sua própria casa, segundo o testemunho de viajantes
que viram escravos ser oferecidos de porta em porta, acorrentados. Mas a
maioria dos negros recém-chegados destinava-se às fazendas do interior. A eles
estava reservada uma última etapa da viagem, Brasil adentro, capitaneada por
tropeiros que ou estavam a serviço do próprio traficante ou, o que era mais
comum, se encarregavam eles próprios do empreendimento.
Longa era a via-crúcis do escravo, da savana africana onde se dava a captura
até o destino final. A travessia marítima durava de 33 a 43 dias, quando se
tratava do trajeto Congo-Angola ao Rio. Quando o navio ia se abastecer em
Moçambique, o que às vezes era vantajoso, pois lá o escravo era mais barato, a
viagem durava o dobro. A isso se deve acrescentar o longo período durante o
qual os navios permaneciam estacionados em portos africanos, esperando que a
encomenda chegasse do interior - podia estender-se a até 165 dias. Segundo
Joseph Miller, um autor citado por Florentino, 40% dos negros capturados em Angola
morriam durante o deslocamento até o litoral e outros 10% ou 20% nos armazéns
onde ficavam alojados no porto, antes do embarque. Mais da metade, assim,
morreria na própria África. Quanto à travessia marítima, Florentino achou taxas
médias de mortandade que variam de 8,9%, no período entre 1796 e 1811, a 5,6%.
na década de 1820. Isso quanto à travessia a partir da área congo-angolana. Nas
viagens a partir de Moçambique, a mortandade dobrava.
As causas das mortes eram maus-tratos, má alimentação a bordo, superlotação,
doenças. Houve casos extremos. A galera São José Indiano, no caminho entre
Cabinda e o Rio, perdeu, em 1811, 121 dos 667 escravos que transportava. E a
mortandade podia continuar em solo brasileiro, onde os escravos chegavam
exauridos e expostos a doenças para as quais seu sistema imunológico estava
despreparado. O traficante Manuel Gonçalves de Carvalho, numa carta a seu
correspondente em Angola, queixa-se de que, de uma remessa de quinze, apenas
onze escravos lhe tinham chegado vivos, dos quais "mandei dois no mesmo
dia ao cemitério". Estes dois tinham morrido já no Brasil.
De tudo o que foi dito até agora se depreende algo que é uma das conclusões
fundamentais do livro de Florentino: o traficante era um carioca. Ou, ao menos,
um comerciante estabelecido no Rio. Não era um agente da metrópole. Não era um
representante dos interesses portugueses. Isso faz repensar não só o tráfico,
mas o conjunto da economia colonial brasileira, que em geral se imagina
estritamente dependente da metrópole. Escravos foram as maiores importações
brasileiras. E Portugal não tinha capitais para bancar esse negócio. Eis o que
explica, segundo Florentino, a brecha aberta no sistema colonial. O comércio
Sul-Sul, entre a África e o Brasil, por causa do tráfico, era tão importante
quanto o comércio com a Europa.
O comerciante do Rio mantinha sob sua dependência, em graus diversos, os
diversos elos que compunham o negócio da compra de escravos. "0 capital
traficante brasileiro aparecia como detonador e organizador do comércio
negreiro", escreve Florentino. E quem era esse comerciante que comandava
negócio tão vultoso? A resposta é outra das conclusões fundamentais do livro:
não, não se tratava de um negociante marginal, atuando à sorrelfa, fora do eixo
principal da economia da Colônia e, depois, do Império. Muito pelo contrário,
era alguém bem dentro, mais dentro impossível. Ou, para usar as palavras de
Florentino, "ao falar de traficantes, estamos frente à própria elite
empresarial" do Rio e, portanto, do Brasil.
Numa lista feita, em 1799, das 36 maiores fortunas da província do Rio de
Janeiro, sete são de traficantes. O lucro que eles obtinham em suas operações
era em média de 19,2%, muito maior que o dos traficantes ingleses, quando estes
atuavam (9,5%), franceses (10%) e holandeses (5%), e maior que o de uma fazenda
de café - 15%, nos melhores anos. E suas atividades iam muito além do tráfico.
As mesmas pessoas que o comandavam estavam envolvidas também na importação de
tecidos, que seria para o escambo mas ainda podia abastecer o mercado interno.
E os traficantes mantinham um pé também no setor financeiro, como prova o fato
de que das dez companhias de seguro estabelecidas no Rio de Janeiro, em 1829,
sete tinham traficantes entre seus diretores.
Os traficantes, segundo mostram os diversos cruzamentos realizados por
Florentino entre os registros mercantis cariocas, representavam ainda de 9% a
13% do total de importadores de gêneros alimentícios da praça do Rio de
Janeiro. Em termos gerais, conclui o autor, eles eram 10% dos comerciantes
cariocas, e dos maiores - homens "cujos investimentos cobrem diversos
setores econômicos, principalmente o comércio e o crédito", segundo
escreveu, em seus Princípios de Direito Mercantil, José da Silva Lisboa, o
visconde de Cairu.
Claro que, assim sendo, os traficantes eram também íntimos do poder. Muitos se
fizeram merecedores da Ordem de Cristo, a comenda que era outorgada pela
família real. Um deles, Geraldo Carneiro Belens, recebeu a comenda de dom João
VI em virtude de estar sua empresa, a casa Carneiro, Viúva e Filhos, entre as
"que mais se têm distinguido". Outro, Elias Antônio Lopes, deu e
recebeu favores do Estado fartamente, ao longo da vida. Quando a família real
aqui chegou, ele doou-lhe a chácara que possuía em São Cristóvão. Essa
propriedade estaria destinada a ser a residência imperial enquanto durou o
regime monárquico. Tráfico não era para qualquer um, já se disse. Era para
gente fina.
Manuel Congo era o seu nome. Um nome segundo os padrões correntes entre escravos
- um prenome luso-brasileiro associado ao de sua "nação", mesmo se
não fosse bem nação o que designava, mas uma região. Profissão: ferreiro.
Alguns escravos eram treinados em certos ofícios, e por força disso acabavam
virando uma elite entre seus pares. Estado civil: casado. Num dia do início de
setembro de 1839, o corpo de Manuel Congo balançava na forca montada na
freguesia de Pati do Alferes, município de Vassouras, na região do Vale do
Paraíba, província do Rio de Janeiro. Era o desfecho de uma história iniciada
dez meses antes.
Noite de 5 de novembro de 1838. Cerca de oitenta escravos da fazenda Freguesia,
pertencente a Manuel Francisco Xavier, grande proprietário da rica região
cafeicultora de Vassouras, aproveitam a cobertura das trevas para fugir. Uma
fuga de oitenta, está aí já algo de preocupar, que revela concertação e
organização entre os insurretos. Mas ainda havia mais, pois na madrugada
seguinte ei-los na outra fazenda do mesmo proprietário, a Maravilha, juntando
também a escravaria deste estabelecimento a seu intento criminoso. Na
Maravilha, tentaram matar o feitor e arrombaram depósitos, apossando-se de
grande quantidade de mantimentos e ferramentas. Colocaram até escadas na janela
da cozinha, nos fundos da casa-grande, para facilitar a fuga das escravas do
serviço doméstico, que lá dormiam. Rumaram então para uma fazenda vizinha, de
propriedade de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, onde se reuniram a mais
companheiros. Os fugitivos agora eram centenas. Quantos? Talvez 400.
Estamos agora no livro Histórias de Quilombolas,de Flávio dos Santos Gomes. Que
pretendiam os negros fugidos, formar um quilombo? Possivelmente, mas isso nunca
ficou claro. Recorramos por um breve instante a outros autores, João José Reis
e Eduardo Silva, que, no livro Negociação e Conflito, escrevem: "Os
escravos fugiam pelos mais variados motivos: abusos físicos, separação de entes
queridos por vendas ou transferências inaceitáveis ou o simples prazer de
namoro com a liberdade. Conhecedores das malhas finas do sistema, escapavam
muitas vezes já com intenção de voltar depois de pregar um susto no senhor e
assim marcar o espaço de negociação no conflito".
Uma fuga em massa como a de Vassouras, de qualquer forma, era algo incomum e
assustador. No dia 8 de novembro, o juiz de paz de Pati do Alferes mandava
ofício ao coronel-chefe da Guarda Nacional na região, Francisco Peixoto de
Lacerda Werneck, pedindo-lhe providências, em prol "da ordem e do sossego
público". A resposta veio presta. Em 48 horas Lacerda Verneck tinha mobilizado
uma força de algumas centenas de homens. Loquaz e às vezes fanfarrão nos
memorandos que ia produzindo, Lacerda Werneck enviou um ao presidente da
província, informando-o da mobilização e acrescentando: "Nesta ocasião
dirigi a meus camaradas um discurso, cuja leitura enérgica produziu um efeito
admirável, fazendo ressoar por alguns momentos entusiasmados vivas". A
pátria estava em perigo. Carecia salvá-la.
Uma figuraça esse Lacerda Werneck. Na Independência já tinha a graduação de
tenente de cavalaria de milícias. Em 1831 era coronel. Agora, neste ano de
1838, tinha 43 anos, e além de chefe local da Guarda Nacional era um poderoso e
influente fazendeiro, que mais tarde se tomaria o barão de Pati do Alferes. Ao
morrer, em 1861, era possuidor de sete fazendas e 1.000 escravos. A pátria
estava em perigo, mas também seus interesses muito concretos. A Lacerda
Werneck, presidente da Sociedade Promotora da Civilização e Indústria da Vila
de Vassouras, que zelava pelos interesses comuns dos proprietários, não interessava
ver a região transformada em sede de quilombos, pretos alevantados, lugar de
desordem e desrespeito.
E lá se embrenhou ele no mato, atrás dos negros fugidos. Tinha uma vantagem: os
negros avançavam abrindo picadas. Sua força já encontrava as picadas abertas. O
juiz de paz viajava a seu lado. No dia 11 de novembro, às 5 da tarde, narra
Lacerda Werneck, num de seus memorandos, "sentimos golpes de machado e
falar gente". Tinham localizado um primeiro grupo de escravo. Estes se
deram conta da presença dos perseguidores, porém. "Fizeram uma
linha", mobilizaram suas armas, "umas de fogo, outras
cortantes", e gritaram: "Atira caboclo, atira diabos". Lacerda
Werneck prossegue, com seu jeito em que a gramática pode sofrer abalos, mas
nunca o entusiasmo: "Este insulto foi seguido de uma descarga que matou
dois dos nossos e feriu outros dois. Quão caro lhes custou! Vinte e tantos
rolaram pelo morro abaixo à nossa primeira descarga, uns mortos e outros
gravemente feridos, então se tornou geral o tiroteio, deram cobardemente
costas, largando parte das armas; foram perseguidos e espingardeados em
retirada e em completa debandada..."
No dia seguinte. mais fugitivos foram apanhados. Sua luta agora era sem
esperança. Seus víveres e armas tinham sido apreendidos. Ficaram alguns grupos
vagando pela floresta, de outros não mais se soube, outros ainda voltaram às
fazendas, não sem antes lançar mão do recurso do "apadrinhamento" -
ia-se a uma fazenda vizinha e pedia-se ao dono que os "apadrinhasse"
de volta à fazenda de origem, escoltando-os e pedindo a seus senhores que
fossem clementes. Foram presos os líderes da rebelião, inclusive Manuel Congo,
acusado de ser o "rei" do eventual futuro quilombo, e Mariana
Crioula. a "rainha". Causou espécie, no processo, a participação
desta Mariana na rebelião, ela que era "uma crioula de estimação de dona
Francisca Xavier", isto é, uma escrava doméstica, considerada das mais
dóceis e confiáveis. Lacerda Werneck contou que ela só se entregou
"cacete" e gritava: "Morrer sim, entregar não".
Foram indiciados dezesseis fugitivos no processo. Em janeiro de 1839 deu-se o
julgamento. Manuel Congo foi condenado à morte, acusado de ser responsável
pelas duas mortes ocorridas entre os perseguidores. Oito réus foram absolvidos.
Sete foram condenados a "650 açoites a cada um, dados a cinqüenta por dia,
na forma da lei", além do que deviam andar "três anos com gonzo de
ferro ao pescoço". O susto, para a boa sociedade de Vassouras, tinha
passado, mas fora grande. Alarmou a província e ecoou pelo Império. Um
destacamento do Exército, com cinqüenta homens, chegou a ser enviado da corte a
Vassouras. No comando, quem vinha? Não poderia haver alguém mais qualificado,
destinado à glória futura: o tenente-coronel Luís Alves de Lima e Silva, futuro
duque de Caxias e patrono do Exército brasileiro. O destacamento não precisou
atuar, porém. Chegou a 14 de novembro, quando o levante já fora dominado.
A partir desses fatos, Flávio dos Santos Gomes investiga quem seriam os negros
rebolados, que circunstâncias os teriam levado ao levante, por que a fuga teria
causado tanto pânico, as condições gerais da economia e da sociedade da região
e as mentalidades da época. O resultado é um retrato da sociedade escravocrata,
naquela rica região, nos primeiros anos de Brasil independente. Talvez valha
corno mini-retrato da sociedade escravocrata brasileira.
Vassouras já era uma importante produtora e exportadora de café. Em meados do
século, sua população alcançaria 35.000 pessoas.
Na população escrava, segundo dados de 1837-1840, os africanos predominavam
fortemente sobre os crioulos: eram três em cada quatro. Também havia forte
predominância dos homens (73,7%) sobre as mulheres (26,3%). E os escravos
estavam sobretudo na faixa entre 15 e 40 anos, a preferida pelos fazendeiros
porque a mais produtiva: 68% nela se situavam.
Uma análise do inventário de Manuel Francisco Xavier, o proprietário em cujas
fazendas começou o levante e cujos escravos, ao que tudo indica, eram a grande
maioria dos alevantados, acentua ainda mais os traços observados na
generalidade da região. Entre os 449 escravos que possuía, ao morrer, em 1840 -
dois anos apenas depois do levante -, 85% eram homens e 80% eram africanos.
Entre os dezesseis participantes da fuga indiciados no processo, onze eram
africanos e cinco eram crioulos. Sete eram mulheres. E dez eram trabalhadores
especializados, por oposição aos trabalhadores na roça: ferreiros, como Manuel
Congo, carpinteiros, caldeireiros, ou, no caso das mulheres, lavadeiras,
costureiras ou enfermeiras. Escreve Flávio dos Santos Gomes: "É possível
supor que a organização deste levante foi ampla, complexa e pode ter envolvido
tanto os cativos que trabalhavam no campo quanto aqueles que exerciam ofícios
especializados, que por certo tinham mais prestígio entre os demais, além de
mobilidade na fazenda, o que garantia melhores condições para contatar seus
parceiros, inclusive de outras fazendas, para um plano articulado de
insurreição e fuga".
Manuel Francisco Xavier tinha má fama entre os colegas fazendeiros. "Há
muito tempo que se receava o que hoje acontece, por fatos que se têm observado
entre esta escravatura", escreveu Lacerda Werneck, num dos memorandos
produzidos no calor da batalha. Homens brancos, feitores e capatazes, teriam
sido espancados e até assassinados pelos escravos, nas fazendas de Xavier.
Escravos seriam castigados até morrer. Haveria iniqüidades. falta de ordem e
falta de pulso. Ou, como escreve Flávio dos Santos Gomes, teriam sido
desrespeitados, nas fazendas em questão, os limites da "economia
moral" vigente. Lacerda Werneck era o porta-voz do temor geral de que essa
situação contaminasse outras fazendas e se alastrasse pela região.
Lacerda Werneck produzirá na década de 1840, com o intuito de orientar o filho,
estudante de direito canônico na Europa, um opúsculo que se tornaria um
clássico da ideologia do senhor de escravos. Escreveu ele: "Não se dirá
que o preto é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos, ou
demasiada severidade, ou frouxidão excessiva, porque esta torna-os irascíveis
ao mais pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela toca-os à
desesperação". Lacerda Wemeck não está satisfeito com o sistema, "um
cancro roedor", formado por escravos "cujo preço atual não está em
harmonia com a renda que dele se pode tirar, ainda de mais acresce a imensa
mortandade a que estão sujeitos". Mas, como é preciso continuar, dá seus
conselhos ao filho.
Deve-se introduzir os cativos "na doutrina cristã", ensina ele,
fazendo-os confessar e respeitar os domingos e dias santos. Deve-se induzí-los
à "troca de roupa semanal, para que não vestissem roupas molhadas".
Os que se adoentam devem ser tratados "com todo o cuidado e
humanidade". Mas deve-se "proibir severamente a embriaguez, pondo-os de
tronco até passar a bebedeira, castigando-os depois com vinte até cinqüenta
açoites". O fazendeiro deve ainda "reservar um bocado de terra onde
os pretos façam as suas roças, plantem o seu café, o seu milho, feijão, banana,
batata, cará, aipim, cana, etc". Acreditava Lacerda Werneck que "com
esse pequeno direito de propriedade" os escravos adquiririam "certo
amor ao país" e ficariam menos inclinados às insurreições.
Em 1835, tinha ocorrido na Bahia a Revolta dos Malês, envolvendo talvez até
1.500 negros e ensangüentando as ruas de Salvador. Uma onda de choque
espalhou-se pelo Império. "A incidência de denúncias e rumores relativos a
prováveis planos de sublevações escravas alimentava a cada dia", escreve
Flávio dos Santos Gomes. O medo já estava no ar, quando se deu a fuga em Vassouras.
Temiam-se sobretudo os "pretos minas" - os da costas ocidental da
África, que eram os negros da Bahia. O medo se multiplicava quando se
encontravam "escritos árabes" entre os cativos - indício da presença
de muçulmanos, os responsáveis pelo levante de Salvador.
Em 1854, dezesseis anos depois da grande fuga das fazendas de Manuel Francisco
Xavier, e dezenove depois da Revolta dos Malês, ainda havia medo em Vassouras.
Formou-se nesse ano no município uma "comissão permanente" com o
objetivo de conclamar os fazendeiros a uma política e uma ação conjunta, diante
do perigo das insurreições de escravos. Dizia o texto de constituição da
comissão, fundada por quatro fazendeiros: "Se o receio de uma insurreição
geral é talvez ainda remoto, contudo o das insurreições parciais é sempre
iminente, com particularidade hoje que as fazendas estão se abastecendo com
escravos vindos do Norte, que em todo tempo gozaram de triste
celebridade". Explica-se: o tráfico oceânico havia finalmente se
encerrado, em 1850. Restava aos fazendeiros um comércio inter-regional e
inter-provincial no qual o maior fluxo era de escravos do Nordeste para o
Sudeste.
A comissão recomendava aos fazendeiros que se armassem, mantivessem uma polícia
vigilante, fizessem os escravos dormir em lugar fechado, impedissem a
comunicação entre as fazendas. Por outro lado, deviam permitir a diversão entre
os escravos: "Quem se diverte não conspira". E deviam insistir na
observância, pelos escravos, dos preceitos cristãos: "A religião é um
freio e ensina a resignação". Enfim, a "comissão permanente"
recomendava que os fazendeiros introduzissem colonos europeus em suas fazendas,
e até estipulava as proporções em que isso devia ser feito: um para cada doze
escravos, dois para cada 25, cinco para cada cinqüenta, sete por 100... "0
escravo é o inimigo inconciliável", advertia a comissão. Em contrapartida,
o trabalhador branco seria "um braço amigo, um companheiro de armas, com
cuja lealdade se pode contar na ocasião da luta: os interesses são
comuns".
A pesquisa de Flávio dos Santos Gomes não apenas nos revela um episódio.
Principalmente, nos introduz num clima. De truculência e tensão, e de medo,
medo de que de uma hora para outra aquilo tudo poderia acabar muito mal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário