terça-feira, 2 de outubro de 2012


O artista da Capela Sistina – a historia de Michelangelo.

            Certa manhã no inverno de 1494, o jovem Michelangelo Buonarroti olhava pela janela a cidade coberta de branco. A neve que caíra durante a noite inteira cobria as ruas, praças, igrejas e palácios, transformando Florença numa cidade de mármore. Mas a bela paisagem entristecia Michelangelo, pois lhe recordava que se amigo e patrono, o duque Lorenzo de Médici, não mais existia. Lorenzo fora o primeiro a reconhecer o talento do jovem escultor, recebera-o em seu palácio e lhe encomendara várias esculturas em mármore.

            Agora, depois da morte do duque, seu filho Piero assumira seu lugar. Piero era um bobo vaidoso e não via utilidade para artistas da estatura de Michelangelo. Gostava de festas, jogos e cavalos, e admirava mais um cavalariço que sabia montar bem do que um mero escultor.

            Uma batida na porta despertou Michelangelo do devaneio. Pela janela, viu que era um dos impudentes mensageiros de Piero. O mensageiro olhou para cima e, dando com o escultor na janela, gritou: _Desça aqui, Michelangelo! É o seu dia de sorte. Piero me mandou buscar o famoso escultor para encomendar uma estátua!

            _ Ande logo! – tornou a gritar o mensageiro. – Rápido! Sua Magnificência não vai esperar a vida inteira!

            _Tem certeza? – perguntou Michelangelo. _ Piero nunca me chamou ao palácio.

            _ Pois está chamando agora, meu amigo. Tem um bloco de mármore enorme para você usar seu dom. Ande logo!

            _ Michelangelo vestiu o manto e correu escada abaixo e seguiu o mensageiro em silencio, mas seu coração saltava a cada passo.

            _ É o seu dia de sorte, hein? – escarnecia o mensageiro, cruzando a praça, cheia de neve. – Trabalhar de novo para a nobre família Médici; pode existir coisa melhor?

            Pouco depois chegaram ao palácio. Encontraram Piero com alguns amigos, junto à janela de um aposento do segundo andar.

            _ Aí estar! – exclamou Piero. – Deve ter pensado que eu nunca chamaria voce, jovem mestre! Mas estamos precisando da sua arte hoje. Você tem mesmo muito talento, não tem, meu amigo?

            Michelangelo olhou diretamente nos olhos de Piero.

            _Seu pai achava que sim – respondeu, sério.

            Piero enrubesceu levemente, mas virou-se para a janela e continou: _ Vou dar um jantar essa noite e quero mostrar uma bela estátua sua aos meus convidados. O material está no jardim: camadas de mármore branco com que voce tanto sonha, cobrindo todo o chão. É claro que amanhã de manhã o sol derreterá sua obra de arte, mas nada dura para sempre, não é verdade, mestre?

            Michelangelo empertigou-se. Não podia crer no que ouvia. Ele, Michelangelo, o orgulho de Florença, fazer uma estátua de neve!         

            Sentiu a raiva subir em seu peito, apertar seu coração, prender sua respiração, contrair sua garganta. Viu o sorriso zombeteiro de Piero, e seus amigos. Teve vontade de matar, esmagar todos eles, fazê-los sentir sua fúria. Mas não ousava. A vergonha tomou o lugar da raiva, queria sair correndo, se esconder e nunca mais ser visto por aquele bando de tolos arrogantes.

            Alguma coisa dentro dele no entanto o fez permanecer ali. Era um momento difícil de suportar, mas Michelangelo confiava em si mesmo. Sabia possuir um talento raro e nada seria obstáculo à sua arte. As ondas de raiva e humilhação se desfizeram, e ele encontrou uma resposta: _ Atenderei ao seu pedido, nobre Médici.
            Abandonou-os e momentos depois chegava ao jardim, aliviado por estar só, o olhar fixo no imaculado lençol branco estendido a seus pés.

            _ Vou mostrar o meu talento – murmurou. _ Até a neve serve à minha arte.

            Começou a trabalhar com presteza. Empilhou a neve, fez um monte bem batido, empilhou mais, socou mais. Passou horas empilhando neve até conseguir um bloco enorme e bem rígido, com os de mármore.

            Começou a esculpir, com o melhor de seu talento. Uma cabeça emergiu, os braços, mãos, pés. A massa de gelo ganhava vida. Uma figura vigorosa nascia no jardim. Afastava-se para avaliar o trabalho e voltava,  alheio a tudo, exceto à sua arte. Enfim ficou pronta a enorme estátua de neve.

            Deu por terminada. Era um belo trabalho. Amanhã nada restaria dele, mas, por algumas horas, faria Florença mais bela.

            Uma exclamação de assombro arrancou Michelangelo da contemplação da própria obra. Piero estava parado, atrás dele, boquiaberto diante do imenso homem de neve. O sorriso de escárnio tinha se transformado num brilho de admiração nos olhos de Piero, mas o olhar deslumbrado logo deu lugar a uma nuvem de tristeza.

_ Neve! ... Neve, não – murmurou. _ é uma coisa tão bela devia durar para sempre.

            Os anos se passaram. Michelangelo conquistou a admiração de toda a Itália. Um dia foi chamado a Roma para atender a uma encomenda do papa Júlio II. Cheio de entusiamo, foi às minas de mármore de Carrara, disposto a selecionar os melhores blocos. Encantando com as pedras gigantecas, via no interior de cada uma um ser à espera da libertação por meio do seu cinzel. Passou seis meses examinando, escolhendo, comprando, rejeitando, a mente repleta de imagens futuras.

            Quando chegou a Roma, porém, o papa havia mudado de idéia. Levou-o à Capela Sistina, um grande retângulo de altas paredes e teto em abóboda.

            _ Vamos decorar o teto! – disse o papa. – Voce vai pintá-lo. Michelangelo empalideceu.

            _Mas sou escultor! – protestou. – Não sou pintor.

            _ Voce não aprendeu a misturar tintas com mestre Ghirlandaio? É só lembrar o que ele lhe ensinou!

            _ Mas não pinto há muitos anos! Chame Rafael. Ele é excelente pintor.

            _ Claro que não. Rafael está ocupado. Além disso, vi muitos desenhos seus. São os melhores.

            Michelangelo olhou para o teto alto. Centenas de metros quadrados para cobrir de pinturas – levaria meses. Pensou nos blocos de mármore, que estariam parados, inúteis por todo esse tempo, e estremeceu. Não era o que queria fazer! Mas engoliu a raiva e o desapontamento. Não era fácil dizer não ao papa, principalmente a um papa tão insistente. E aceitou, mas com o coração pesado.

            E lá se foi Michelangelo escada acima, para pintar deitado num andaime. Era um trabalho torturante. As tintas caíam em seu rosto, queimavam seus olhos, e cada vez ele odiava mais aquela missão.

            _ Sou escultor, não pintor! – resmungava.

            Havia muitos anos não pintava, e receava não ser capaz. Pediu ajuda a outros artistas, mas logo descobriu que atrapalhavam mais do que ajudavam. Dispensou-os e apagou tudo que haviam feito. Trabalhando sozinho, em contato somente com seu ajudante de preparo de tintas e com o papa. “Se vale a pena ser feito, vale a pena ser bem feito”, dizia a si mesmo. E prosseguia deitado, pintando no silencio e na solidão.

            Um dia viu, horrorizado, que a superfície recém-pintada começava a mofar.

            _ Eu avisei a Sua Santidade que não sou pintor! _ gritou _.  _ Tudo que já fiz está estragado! _ Mas em seguida descobriu que apenas tinha posto água demais no gesso e não prejudicara o resultado.

            E prosseguiu. Começava a pintar ao raiar do dia e só parava quando não enxergava mais as cores. Muitas noites nem saía da capela. Acostumou-se tanto à incômoda posição  que, quando recebia uma carta, inclinava a cabeça para trás e levantava a carta para ler. Mal parava para comer, contentando-se geralmente com um pedaço de pão. Adoeceu de exaustão. Mas prosseguia.

            Às vezes o papa, muito impaciente, subia ao andaime para fiscalizar a obra.

            _Quando vai terminar? – e era invariável pergunta.

            _ Quando eu acabar! – era invariável resposta.

            Gradualmente emergiam do teto as mais perfeitas formas criados por mãos humanas. Deus Pai separando a luz e as trevas; a criação de Adão e Eva; a expulsão do paraíso; o dilúvio. Uma após outra, iam surgindo do pincel de Michelangelo mais de trezentas figuras, sublimes, plenas de força e grandiosidade das esculturas do mestre.

            Passados quatro longos anos de fadiga e isolamento, a imensa tarefa foi terminada. O andaime foi retirado, as portas da Capela Sistina foram abertas. As pessoas vinham olhar, boquiabertas diante da magnitude da obra de arte. Quando Rafael apareceu – mesmo Rafael que Michelangelo pedira ao papa que contratasse em vez dele -, agradeceu a Deus ter nascido no mesmo século que Michelangelo.

            Ainda hoje as multidões que visitam a Capela Sistina admiram o teto, extasiadas diante da obra de um único homem cobrindo tamanho espaço com tanta maestria artística, trazendo à vida tantas visões grandiosas. Calam-se maravilhados perante o resultado da determinação e do gênio de um homem, das pinturas mais magníficas do mundo criadas pelas mãos de um escultor.


           


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