Revolta de longa data
Separadas por mais
de dois séculos, as manifestações que tomam as ruas do Brasil, hoje, têm
semelhança com as que ocorreram durante o Antigo Regime
Foto: o primeiro estado (Clero) e o segundo estado (nobreza) sobre o terceiro estado (Plebe).
Para historiadores
e cientistas sociais, os eventos que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos dias
funcionam como uma espécie de laboratório no qual várias teorias são testadas
para explicar os acontecimentos. Aos historiadores esse é um desafio ainda
maior, já que por estarem mais habituados a refletir sobre o tempo longínquo, a
“História do Tempo Presente” se torna mais difícil. É mais fugidia, como há
muito advertiu Fernand Braudel. Nem por isso deve se furtar da tarefa de
fazê-la.
Aos que conhecem um pouco mais
de perto a história dos protestos populares, os acontecimentos recentes podem
parecer surpreendentes por sua semelhança com o que se passou há dois ou três
séculos no continente europeu e também nas colônias na América. Vários pontos
em comum poderiam ser apontados, três se apresentam de maneira muito explícita:
o aumento de preços de serviços, o discurso repressor das autoridades e a veiculação
de boatos de diferentes tipos.
No momento, já se tornou
evidente que as manifestações não eram apenas pelo aumento de 20 centavos na
passagem de ônibus em algumas capitais. Porém, quando se argumentou que os
manifestantes protestavam por um valor que parecia irrisório, isso não era só uma
maneira de desmerecê-los, mas também era uma forma de reduzir as reivindicações
das pessoas na rua a apenas uma única causa. Essa era uma impressão muito
parecida com a que se tinha dos protestos dos séculos XVII e XVIII. Neste
período, dizia-se que bastava apenas uma má colheita provocar uma alta
repentina dos preços para que as pessoas ganhassem as ruas e protestassem
contra o aumento do preço dos alimentos, como as que aconteceram na França e
Inglaterra nas primeiras décadas do século XVIII.
Como os acontecimentos
recentes revelaram, o aumento do preço das passagens serviu apenas como um
estopim. No Antigo Regime não era muito diferente: quando estourava um
protesto, além dos moradores das Vilas se rebelarem contra medidas que
causassem o aumento dos custos de vida, eles aproveitavam-se ainda para mostrar
toda a sua insatisfação com relação à arbitrariedade de autoridades; ganância
de comerciantes; falta de cuidado na administração dos bens da comunidade,
entre várias outras queixas. Tanto em uma, quanto em outra época, a questão
fiscal desempenhava o papel de catalisar os mais diversos tipos de tensões que
estavam latentes na sociedade.
Outra semelhança está no
discurso dos governantes. Quando se iniciaram as primeiras manifestações
recentes, os discursos dos políticos foram taxativos em classificar os
manifestantes como “vândalos”, sempre com respaldo da grande imprensa. Não era
muito diferente dos protestos da América portuguesa, por exemplo, em que as
autoridades classificavam os rebeldes de bárbaros, principalmente quando havia
o envolvimento de negros e índios. Ou seja, parece o mesmo discurso. Seria uma
mera coincidência? Afinal, o que aqueles que representavam o poder constituído
pretendiam – no passado – conseguir com isso? Classificar as populações de
bárbaros ou vândalos não era apenas recurso de retórica. Isso servia para
endossar uma repressão violenta seja aos rebeldes do século XVIII, seja aos
manifestantes do século XXI.
No mês passado, a opinião dos
governantes só começou a mudar quando jornalistas dos grandes meios de
comunicação foram alvos da repressão policial. A maneira como a mídia cobria os
eventos – inicialmente condenando, mas depois apoiando os de ordem “pacífica” –
foi decisiva para essa mudança de percepção. Àqueles que acompanharam os
protestos pela internet ou pela televisão facilmente se deram conta das
dificuldades para se obter informação segura. Haviam muitas notícias
desencontradas, algumas delas veiculadas e rapidamente corrigidas, outras
falsas intencionalmente disseminadas com o objetivo de criar um clima de pânico
na população.
No Antigo Regime,
um dos acontecimentos que talvez melhor exemplifique esse ambiente, certamente
tenha sido na Revolução Francesa, durante os meses de julho e agosto, de 1789,
momento que ficou conhecido de “O Grande Medo”, sobre o qual Georges Lefebvre escreveu
uma obra clássica. Na França, os camponeses receosos que a extinção dos
direitos feudais pudesse resultar numa exploração ainda maior dos seus
trabalhos, saquearam propriedades, castelos e igrejas, espalhando o pânico
entre a população. Nesse período as comunicações eram difíceis e a escassez de
informações facilitava a disseminação de boatos. Tanto no Antigo Regime quanto
nos dias atuais percebemos uma grande proliferação de rumores. A diferença é
que antes eles surgiam em razão da escassez de informações, ao passo que agora
são ocasionados pelo excesso.
Apesar dessas características
comuns não se pode dizer que o movimento que ainda ganha as ruas do Brasil não
seja um fato novo. Ao historiador que se arrisca a escrever a História “no
calor do acontecimento” é preciso muita cautela. Os protestos populares guardam
a característica de serem imediatos, suas demandas precisam ser atendidas
rapidamente, sob o risco de se perder o controle da situação e, nesse aspecto,
é possível considerar que os protestos que aconteceram até então foram bem
sucedidos, pelo menos em seus objetivos iniciais. As passagens não foram apenas
reduzidas como desencadeou um verdadeiro processo de redução das tarifas nas
principais capitais do país. É certo que as reivindicações não se reduziam
somente a isso e demandas importantes da sociedade brasileira ainda precisam
ser alcançadas. Os desdobramentos dos protestos ainda não são conhecidos e
somente as rupturas que forem feitas irão dizer se se esta diante de um
protesto incomum.
Gefferson Ramos Rodrigues